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“Já que todos os modelos estão errados, o cientista deve estar alerta àquilo que é significativamente errado. É inadequado preocupar-se com ratos quando há tigres lá fora” (George Box)

Um amigo da época da faculdade me contou como conseguiu um aporte em sua startup com apenas 20 minutos de papo com um investidor anjo. Um capuccino e duas mordidas em um pão de queijo. Contou um pouco de si, dos colegas que havia trazido para ajudar e da hipótese que buscavam validar. Falou também de uns papos animadores com empresas que gostariam de executar um piloto com a sua solução e, por fim, da necessidade de bancar 3 ou 5 contratações para entregar esse projeto. O investidor perguntou qual era a previsão de faturamento desse contrato:

 

– Entre cem e duzentos mil… em doze meses…. — respondeu meu amigo.
– Que valuation você busca?
– Quanto você acha adequado?
– Entre 10 e 15 vezes…
– A receita projetada?
– É.
– 13 vezes?
– Fechado!

Duas derradeiras mordidas no pão de queijo borrachudo para fingir sobriedade — e disfarçar a plácida cara de b. de quem fechou um negócio sem a mínima ideia do que acabara de fazer.

O método de avaliação de valor por múltiplos de mercado (ou “modelo de valuation relativo”) é o preferido do mercado de capitais: 85% dos relatórios de equity research são baseados nessa metodologia, de acordo com Aswath Damodaran, o famigerado professor de finanças da NYU e autor dos melhores materiais sobre valuation na opinião deste que vos escreve. E o que fundamenta essa popularidade toda?

Como o próprio Damodaran define, “múltiplos são apenas estimativas de preço padronizadas”. Assim como comparamos imóveis pelo “preço por metro quadrado” ou escolhemos entre o pacote duplo de Yakult ao invés do simples de Chamyto pelo “custo por garrafinha”, investidores experientes valem-se da sua experiência anterior e de informações sobre outras transações similares para determinar o valor relativo de uma empresa. 

Trata-se de não muito mais do que uma “regra de três”: se investidores e analistas avaliaram uma determinada empresa em X reais quando ela reportava uma receita (ou lucro, ou EBITDA) de Y reais, uma empresa similar deve ter um valuation proporcional — ou seja, X vezes sua receita (ou lucro, ou EBITDA) dividida por Y. Assumindo que a avaliação original estava correta e que ela determinou uma transação efetivamente concretizada, deduz-se que o nível de preço em que aconteceu foi aceitável para ambas as partes. 

Portanto, alguém “fez as contas”, “deu o preço”, “criou o mercado”, e é razoável induzir que esse nível de preço seja aceitável para outras partes que desejem fechar transações similares.

Na área do Venture Capital, igualmente, o modelo de valuation relativo é amplamente difundido e aplicado como uma técnica heurística: agentes observam as transações que estão ocorrendo no mercado (“fulano pagou 10x por essa empresa no round Seed”, “seu principal competidor acabou de captar um Series A a 5x”, “a Nãoseiquefy está negociando a 20x na Nasdaq”), padronizam os preços relativos em função da amostra disponível (“a média dos rounds de Series A do seu setor é de 8x”) e aplicam esses preços, com ajustes, às ofertas disponíveis (“como vou entrar no Seed, pago 13x”).

Esse modelo é extremamente ágil: pouca matemática, mas muita consistência com a realidade observável. Fácil de comunicar, eficiente para negociar.

Outra vantagem evidente desse modelo é sua praticidade como ferramenta para avaliar o desempenho de gestores de investimento. O principal objetivo dos gestores de investimento é (ou deveria ser) maximizar seu ganho relativo, gerar retorno acima de benchmarks ou do custo de oportunidade dos seus investidores — ficar acima da média. 

Para quem decide investir de acordo com esse modelo, praticamente só interessa saber se o negócio saiu caro ou barato em relação ao que o “mercado” pagaria — os demais investidores -, e não se o preço foi “certo” ou “justo”. De outro modo: importa mesmo é o valor relativo, não o valor intrínseco.

Aproveitando a deixa, um breve interlúdio para uma importante definição: valor intrínseco, ou valor fundamental, é o “preço justo” atribuído a um ativo por investidores racionais com perfeito conhecimento das características de risco e retorno de um ativo. Ou seja, é o “preço que ninguém discute”, o famoso “é o que é”, o custo de meia dúzia: seis. É, portanto, uma definição ideal de “valor”, um termo abstrato e didaticamente útil, mas não um dado observável na realidade. 

Todas as transações que ocorrem no mercado de capitais (e em qualquer mercado, arrisco afirmar) acontecem em níveis de preço que tendem a se aproximar do ‘valor intrínseco’, mas que são, na realidade, influenciados por diversos fatores, como:

  • Quantidade de ofertantes e demandantes: quanto mais “disputa” há no mercado, menor a chance de transações muito desequilibradas;
  • Poder de barganha das partes: condições desiguais de negociação tendem a gerar mais “ofertas que não se pode recusar”;
  • Qualidade, disponibilidade e custo da informação sobre o ativo: negociantes experientes e bem informados fazem melhores negócios;
  • Vieses cognitivos: desvios recorrentes (e naturais!) do raciocínio lógico (dá uma olhada aqui e aqui)
  • Erros de cálculo: até a NASA erra

Para um ativo financeiro — títulos de renda fixa, operações de crédito ou participação no capital social de uma empresa — o valor intrínseco é o valor presente do seu retorno financeiro esperado no futuro, ponderado pelo seu risco. 

Se eu pago 100 hoje, é porque espero receber 200, 300 ou 500 em um momento qualquer, no futuro. Um investidor anjo ou fundo também tem essa expectativa: vai aplicar dinheiro buscando vender sua participação em um futuro próximo (entre 5 e 10 anos, tipicamente) ou mesmo receber dividendos enquanto for sócio. 

Mesmo no caso de investidores estratégicos — aqueles que buscam absorver sinergias, entrar em novos mercados, absorver um time talentos, eliminar competição — o valuation que estão dispostos a pagar é proporcional ao benefício — em última instância, financeiro — que esperam com esse investimento.

Os determinantes do valor intrínseco não desaparecem ou mudam quando se aplica um modelo de valuation por múltiplos. É sempre possível “desconstruir” um múltiplo, decompondo-o em fatores como geração de caixa esperada, taxa de crescimento, taxa de desconto, etc. 

Bons analistas são capazes de enxergar a relação profunda entre esses determinantes de valor, múltiplos de mercado e o valor intrínseco e, por isso, conseguem emitir bons pareceres e têm mais chance de fazer bons negócios. É um exercício extremamente útil, e muitas vezes, necessário. Só que, em certos casos, custoso e pouco prático.

Meu amigo e seu (agora) sócio não quiseram perder tempo com isso. Economizaram horas de Excel. Haveria tanta incerteza em uma projeção de fluxo de caixa descontado que nem cogitaram a hipótese de executar essa modelagem. Simplesmente confiaram na melhor informação que os mercados são capazes de gerar: o preço. Trocando impressões sobre os tigres, ignoraram solenemente os ratos.

Post escrito por Eduardo Constantini, Associate & Partner na Triven e publicado originalmente aqui